quinta-feira, 31 de março de 2011

segunda-feira, 21 de março de 2011

(uma) Série de contos

Uma ameaçadora gravata amarela

Um profundo mistério. Toda a história estava envolta num profundo mistério. Um mistério tão profundo que pouquíssimas pessoas conheciam a história. Pouquíssimas pessoas e algumas moscas. Bom, pouquíssimas pessoas, algumas moscas e um baralho de cartas de jogar. *
Na verdade, apenas conheciam a história pouquíssimas pessoas, algumas moscas, um baralho de cartas de jogar e vários pardais. Os peixes-voadores também conheciam a história, mas ignoravam alguns pormenores importantes. Ignoravam, por exemplo, que no dia fatídico Turovsky usava uma ameaçadora gravata amarela e que Sinavsky soltara um ai bestial antes de tropeçar num longo et caetera e cair para sempre no sono.
Ah sim, esquecia-me de dizer que Nussbaumer, o general dos elegantes sapatos de fivela, também conhecia a história. Mas é um esquecimento sem importância e, além disso, ainda estou a tempo de lembrar esse detalhe. A não ser que eu esteja a mentir. E aí a história muda de figura.

* Não vou aqui fazer uma nota de rodapé sobre este baralho de cartas de jogar. Serviria apenas para quebrar o ritmo de leitura e aborrecer o leitor. 

Rui Manuel Amaral, Doutor Avalanche, Coimbra, Angelus Novus, 2010
("fonte": professor de português)

"E se não se tivesse assustado com a gravata amarela e não tivesse comprado os sapatos de fivela, nos quais tropeçou..." (bea) E se, e se, e se...... e se tudo não passar apenas de uma mentirinha.



(uma) Série de contos

Dois Pombinhos
 
 "Como explicar melhor? Parecia uma borbulha. Uma borbulha rotundamente espetada na ponta do nariz. Era um pouco isso, mas era mais do que isso. Uma espécie de grossa gota de sangue, cheia, altiva e luzidia. O médico foi claro: "Trata-se da semente da loucura. Nem é bom falar no assunto." E calou-se.
  Ora, tratando-se de uma semente, o caso só podia piorar. A semente germinou e cresceu a um ritmo obstinadamente vegetal. No fim do Verão era já um facto muito significativo pendendo do nariz como um fruto maduro. O médico disse: "Trata-se do fruto da loucura. Nem é bom falar no assunto." E calou-se.
Na frente do espelho, não sabia se devia entregar-se ao desejo de rir ou ao transporte da indignação. Era acometido por espantosas crises nervosas. Batia na cabeça com um dos punhos, mordia os lábios e balançava o fruto para cima e para baixo calculando-lhe o peso. Depois desfechava sobre si mesmo uma gargalhada tigrina.
Bom, já tenho uma dor insuportável nos dedos em consequência desta superabundante prosa. Vou andar depressa e resumir. Como tudo isto terminou? Quando chegou o momento, em pleno coração do Outono, arrancou o fruto e ofereceu-o cortesmente à amada. Sucedeu assim e foi tudo. Agora, a coisa vai bem entre os dois pombinhos. Sim, vai mesmo muito bem."
 
Rui Manuel Amaral, Doutor Avalanche, Coimbra, Angelus Novus, 2010
("fonte": professor de português)

friso- o amor é MESMO uma loucura.

(uma) Série de contos

Recitar poemas é coisa que não se pode admitir em cafés

" É um tipo como os outros, de longas madeixas pretas e suíças muito farfalhudas. Está sentado num café a beber  cerveja. De repente, levanta-se e começa a recitar versos em voz alta. Um cliente aproxima-se e aplica-lhe uma vigorosa bofetada. O homem, parecendo não se incomodar, insiste na sua solene actividade poética.
Uma velha, muito irritada com a pouca vergonha* , ergue o punho e administra-lhe um soco rápido e seco em pleno rosto. Um bêbado atira-lhe com um copo. O homem cerra os olhos e esforça-se por elevar ainda mais a voz. Os empregados do café, animados pelo desejo louvável de proteger a dignidade do estabelecimento, caem-lhe em cima, numa fúria avassaladora. Mesas viradas e copos quebrados. Ouvem-se injúrias em todos os idiomas. Murros e pontapés seguem-se uns aos outros com uma tal violência que as janelas chocalham nos caixilhos e o chão treme. O homem muda de cor, perde o nariz, estilhaça as rótulas, mas não se deixa vergar pelo evoluir dos acontecimentos.
- Ah!, pudesse eu ser preso de um fogo cruel ou engolido pelo mar tempestuoso! - grita ele com uma determinação inflexível, quase sem dentes, debaixo de uma trovoada de socos e bofetadas.
O dono do café, que é uma alma justa e boa, segura um revólver e, sem gastar tempo nas palavras, alveja o homem no peito. Em consequência disso, o homem morre. E é muito bem feito. Recitar poemas é coisa que não se pode admitir nos cafés.


*  - Vá recitar para outra freguesia, seu atrevido - diz ela, esbaforida de indignação."


Rui Manuel Amaral, Doutor Avalanche, Coimbra, Angelus Novus, 2010("fonte": professor de português)

Qual o mais louco dos loucos? 
Qual a violência mais violenta, a violência mais suave? A humana ou a das palavras?

sábado, 19 de março de 2011

E desapareceres? Pára de me perseguir, de me deixa paranóica com a tua presença indesejável.
Sai, foge, corre para longe e desaparece. Desaparece da minha vida.
Pára de seguir tudo o que faço e de dar passos a seguir de propósito para me provocar. Não provocas. Esquece, são meus, não teus. Pára , pára, pára. Pára de ter essa personalidade que detesto. Pára com as mentiras e falsidades. Estou farta de ouvir a tua voz na minha cabeça. Farta de olhar para a tua cara. Pára de ter esses efeitos obscuros em mim. Pára de me fazer alimentar de raiva porque isto não é saudável e é um sentimento que nos corrói por dentro. Pára de a fazer crescer.
E simplesmente... desaparece ao sabor do vento... e deixa-o voltar sozinho, para me deixar respirar ar puro.