segunda-feira, 21 de março de 2011

(uma) Série de contos

Recitar poemas é coisa que não se pode admitir em cafés

" É um tipo como os outros, de longas madeixas pretas e suíças muito farfalhudas. Está sentado num café a beber  cerveja. De repente, levanta-se e começa a recitar versos em voz alta. Um cliente aproxima-se e aplica-lhe uma vigorosa bofetada. O homem, parecendo não se incomodar, insiste na sua solene actividade poética.
Uma velha, muito irritada com a pouca vergonha* , ergue o punho e administra-lhe um soco rápido e seco em pleno rosto. Um bêbado atira-lhe com um copo. O homem cerra os olhos e esforça-se por elevar ainda mais a voz. Os empregados do café, animados pelo desejo louvável de proteger a dignidade do estabelecimento, caem-lhe em cima, numa fúria avassaladora. Mesas viradas e copos quebrados. Ouvem-se injúrias em todos os idiomas. Murros e pontapés seguem-se uns aos outros com uma tal violência que as janelas chocalham nos caixilhos e o chão treme. O homem muda de cor, perde o nariz, estilhaça as rótulas, mas não se deixa vergar pelo evoluir dos acontecimentos.
- Ah!, pudesse eu ser preso de um fogo cruel ou engolido pelo mar tempestuoso! - grita ele com uma determinação inflexível, quase sem dentes, debaixo de uma trovoada de socos e bofetadas.
O dono do café, que é uma alma justa e boa, segura um revólver e, sem gastar tempo nas palavras, alveja o homem no peito. Em consequência disso, o homem morre. E é muito bem feito. Recitar poemas é coisa que não se pode admitir nos cafés.


*  - Vá recitar para outra freguesia, seu atrevido - diz ela, esbaforida de indignação."


Rui Manuel Amaral, Doutor Avalanche, Coimbra, Angelus Novus, 2010("fonte": professor de português)

Qual o mais louco dos loucos? 
Qual a violência mais violenta, a violência mais suave? A humana ou a das palavras?

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