segunda-feira, 21 de março de 2011

(uma) Série de contos

Dois Pombinhos
 
 "Como explicar melhor? Parecia uma borbulha. Uma borbulha rotundamente espetada na ponta do nariz. Era um pouco isso, mas era mais do que isso. Uma espécie de grossa gota de sangue, cheia, altiva e luzidia. O médico foi claro: "Trata-se da semente da loucura. Nem é bom falar no assunto." E calou-se.
  Ora, tratando-se de uma semente, o caso só podia piorar. A semente germinou e cresceu a um ritmo obstinadamente vegetal. No fim do Verão era já um facto muito significativo pendendo do nariz como um fruto maduro. O médico disse: "Trata-se do fruto da loucura. Nem é bom falar no assunto." E calou-se.
Na frente do espelho, não sabia se devia entregar-se ao desejo de rir ou ao transporte da indignação. Era acometido por espantosas crises nervosas. Batia na cabeça com um dos punhos, mordia os lábios e balançava o fruto para cima e para baixo calculando-lhe o peso. Depois desfechava sobre si mesmo uma gargalhada tigrina.
Bom, já tenho uma dor insuportável nos dedos em consequência desta superabundante prosa. Vou andar depressa e resumir. Como tudo isto terminou? Quando chegou o momento, em pleno coração do Outono, arrancou o fruto e ofereceu-o cortesmente à amada. Sucedeu assim e foi tudo. Agora, a coisa vai bem entre os dois pombinhos. Sim, vai mesmo muito bem."
 
Rui Manuel Amaral, Doutor Avalanche, Coimbra, Angelus Novus, 2010
("fonte": professor de português)

friso- o amor é MESMO uma loucura.

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